Distributismo e liberdade

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“Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?" Mt. 16:26

Chesterton dizia que as coisas que valem a pena ser feitas, vale a pena fazê-las, mesmo que sejam mal feitas. E assim justifico este pequeno texto sobre o distributismo e a liberdade.Apesar da dificuldade, escrever sobre o distributismo é um desafio estimulante, pois significa bem mais garimpar ideias do que desenvolvê-las, pois o trabalho de tecê-las já foi realizado com esmero por homens de inteligência inquestionável. Portanto, não estranhe que um texto como este seja apenas a montagem de um quebra-cabeça onde as peças estão um pouco espalhadas, restando-me somente organizá-las.Pois bem, a ideia de falar sobre o distributismo e a liberdade está em que a essência do distributismo pode ser definida pelo binômio liberdade-propriedade. Esse binômio está claramente expresso no slogan da Liga Distributista, muitas vezes publicado nas edições do G.K.’s Weekly, principal meio de divulgação das ideias distributistas: “A liga para a restauração da liberdade por meio da distribuição da propriedade”.Entretanto, é preciso entender que a liberdade à qual o distributismo defende não é propriamente uma liberdade no sentido de um direito—como a liberdade de locomoção, ou a liberdade de se reunir em locais públicos. Por outro lado, é uma liberdade que desenvolve e aperfeiçoa o homem e contribui para a construção do bem comum. Poder-se-ia dizer que se trata mais de uma libertação do que de uma liberdade, pois não se limita à ideia de ausência de restrições, senão em um crescimento para um modo superior de vida. Todavia, um dos maiores empecilhos para que o homem conquiste essa liberdade é o que modernamente se entende por “Progresso”—“a visão normativa marcada pela ideologia das mudanças sociais, com a passagem, obrigatória e irresistível das formas elementares a formas de organização social cada vez mais complexas. Processo de mudança que seria impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico.”[note]Sandroni, Paulo, “Dicionário de economia do século XXI”.[/note] Na prática, a pressão imposta pela busca da utopia—o culto à mudança e à dissolução da simplicidade—leva o homem, em nome do progresso, à escravidão. Chesterton ressalta essa ideia de diversas maneiras:
Não temos a obrigação de sermos mais ricos, ou mais eficientes, ou mais produtivos, ou mais progressistas, nem, de modo algum, mais apegados às coisas do mundo, ou mais poderosos, se isso não nos faz mais felizes.[note]G.K. Chesterton, "The Outline of Sanity".[/note]

Os grandes senhores recusarão ao camponês inglês seus três alqueires e uma vaca por motivos progressistas se não o puderem fazer por motivos reacionários. Negar-lhe-ão os três alqueires sob o pretexto da propriedade estatal; negar-lhe-ão a vaca sob o pretexto do humanitarismo.”[note]G.K. Chesterton, “O que há de errado com o mundo”.[/note]

O inglês comum tem sido despojado de suas antigas posses, sejam quais forem, e sempre em nome do progresso.[note]Ibidem.[/note]

Como explica W.R. Titterton, o que se chama de progresso é, na realidade, o pecado original, ao qual há de se resistir continuamente.

Não críamos no capitalismo, pois víamos que equivale à escravidão; e víamos que o socialismo simplesmente completaria a escravidão. Propusemos que a Grã-Bretanha, estando na beira de um precipício, se distanciasse dele e buscasse outro caminho. No lugar de coisas grandes, queríamos coisas pequenas. Queríamos a propriedade em um milhão de mãos: em um milhão de famílias. Porque insistíamos na verdade fundamental de que a família é a unidade básica do Estado e em que é a família que deve possuir a propriedade. Por quê? Porque se a propriedade não está amplamente distribuída no Estado, os cidadãos não podiam ser livres.[note]W.R. Titterton, “G.K. Chesterton. A Portrait”.[/note]

Há uma profunda diferença entre a ideia de se possuir pouco e a de tentar a nada possuir. Pode-se dizer que a primeira significa uma perfeição da posse; a segunda, evidentemente, indica uma negação. Possuir pouco significa possuir bem; possuir muito quer dizer possuir mal, e, portanto, deixar de possuir bem os elementos mais próximos e mais preciosos. O capitalista é o homem que não se possui e que à força de exercer e se deliciar com o domínio não se domina.[note]Gustavo Corção, “Três Alqueires e uma vaca”.[/note]

Uma casa no campo com um terreno contíguo suficientemente grande para um pequeno cultivo, bem como para uma pequena criação de gado, equivale, em termos de custo, a um pequeno apartamento no subúrbio da cidade. O distributismo consiste, inicialmente, na internalização da ideia de que a primeira opção é melhor do que a segunda, pelo simples fato de que, enquanto no primeiro caso, os recursos de produção e o produto final pertencem ao produtor, no segundo caso, que é a condição do assalariado, eles pertencem ao empregador. Entretanto, o progresso tem a conotação de que o avanço depende do abandono da “vida rústica” do homem do campo, para abraçar a vida na cidade; algo como largar o cabo do arado para agarrar a alça do metrô.

A promessa de luxo, bem-estar e consumo que o capitalismo industrial oferece, no trabalho assalariado, em troca da liberdade dos cidadãos e longe da propriedade é a pior miragem que pode ocorrer ao homem moderno.[note]Daniel Sada Castaño, “Gilbert Keith Chesterton y el distributismo inglês en el primer tercio del siglo XX”.[/note]

Os ricos literalmente botaram os pobres para fora da velha casa e mandaram-nos para a estrada, dizendo-lhes muito brevemente que aquela era a estrada do progresso. Literalmente obrigaram-nos ao trabalho nas fábricas e à moderna escravidão assalariada, garantindo a todo o tempo que aquele era o único caminho para a riqueza e a civilização.[note]G.K. Chesterton, “O que há de errado com o mundo”.[/note]

Contrariamente à ideia moderna de progresso, a Liga Distributista afirmava que direitos, deveres e poderes devem formar um trio inseparável. Que todo homem tem o direito e o dever de prover o bem-estar material próprio e de sua família e, para conseguir isso, tem que ter poder econômico suficiente. Para que exista esse poder econômico ao alcance dos indivíduos e das famílias, faz-se necessária a restauração da propriedade individual, que é a base da segurança individual, da independência e da liberdade.[note]Ibidem.[/note]

Cremos na ideia social muito simples, de que o homem se sente mais feliz, mais digno e mais semelhante a Deus, quando o chapéu que leva na cabeça é de sua propriedade; e não somente seu chapéu, mas também sua casa, a terra em que pisa e outras coisas mais. Pode ser que alguns prefiram alugar semanalmente um chapéu, ou pegar o chapéu de seus vizinhos usando a metodologia do rodízio para expressar a ideia de camaradagem, ou inclusive meter-se todos debaixo de um enorme chapéu para expressar um conceito cósmico ainda maior; porém, quase todos sentem que se soma algo à dignidade pessoal quando cada um usa seu próprio chapéu.[note]W.R. Titterton, “G.K. Chesterton. A Portrait”.[/note]

Quando o inquilino da casa é, além de ocupante, proprietário e possui os meios necessários para se manter, o lar é um lugar espaçoso e tem vida própria, completa e generosa, chegando a ser até maior por dentro do que por fora.[note] Ibidem.[/note]

Nenhuma lei, nem o mecanismo comercial, nem o mercado, nem o Estado podem dar a segurança, a liberdade e a dignidade que se tem quando se é proprietário. Chesterton chega a afirmar que a palavra verdadeiramente oposta à “propriedade” é “prostituição”. Pois não é certo que o homem venda aquilo que é sagrado, seja seu corpo, seja seu lindeiro.[note]Chesterton, “The Outline of Sanity”.[/note] O homem que recebe sua parcela de poder (propriedade) tem sua independência, ou, como disse Chesterton, é o único que pode desafiar o Estado, porque não depende dele.

Uma nação de camponeses e artesãos, cuja riqueza se baseia em suas ferramentas, na sua habilidade e em seus materiais, pode rir dos patrões, dos especuladores e dos políticos. É uma nação livre e sem medo. O assalariado, por mais importante que seja seu trabalho e por maior que seja sua habilidade, está nas mãos dos exploradores que são donos daquilo pelo qual ele vive.[note]G.K.’s Weekly. “The Distributist League”.[/note]

Os bolchevistas dizem que querem eliminar a burguesia; eu pelo contrário quero eliminar o proletariado. O que está errado não é existir uma classe proprietária; o que é errado é existir uma classe sem propriedade.[note]Chesterton, Illustrated London News (8 de Nov. de 1924).[/note]

A consequência direta da relação entre propriedade e liberdade no distributismo é que a família é o núcleo do Estado e o lar é o centro de formação da humanidade. Sem a propriedade e, consequentemente, sem a liberdade, o lar é afetado e o ser humano é mal formado.

Bem sabemos que o modo de se sanar as enfermidades de nossa civilização é levarmos a cabo uma real concepção de liberdade, restaurar a dignidade do homem e a independência da família, apropriadamente salvaguardada pela distribuição da propriedade. A riqueza e o poder tornaram-se a posse de uns poucos, o Estado tem mutilado a autoridade da família e o artesão tem sido reduzido ao nível de um servo.[note]Chesterton, "Two Difficulties".[/note]

No começo deste pequeno texto, afirmei que o distributismo consiste, inicialmente, na internalização do princípio de que é melhor ter três alqueires e uma vaca do que uma moradia suburbana. E a palavra-chave dessa afirmação é “internalização”, pois o distributismo pretende alcançar seus objetivos trabalhando “de baixo para cima”, através, primeiramente, da tomada de consciência de que a liberdade do homem depende dessa independência econômica conquistada por meio da propriedade particular. Pois, com a internalização dessa concepção, a gigantesca represa (que deriva de prisão), o enorme aparato de concreto que detém a humanidade, que é o pensamento progressista moderno, repito, a internalização da liberdade e dignidade do homem por meio da propriedade, será a fissura dessa represa que, com o passar do tempo, pressionará e abrirá caminho no interior da muralha até que se transforme em uma enorme rachadura que conduza a um vazamento. Todos nós sabemos o que um pequeno vazamento não contido pode ocasionar na mais imponente represa: a pressão que inicialmente expeliu uma gota, mais tarde será aquela que porá a muralha abaixo.Portanto, segundo o distributismo, a luta pela liberdade do homem deve começar pela tomada de consciência de cada indivíduo. O edifício do distributismo se constrói por meio de cada uma das pessoas que acreditam nele.

A primeira pergunta que se faz a um distributista prático não é ‘o que os outros têm que fazer?’, nem ‘o que o governo tem que fazer?’, nem ‘o que a Liga Distributista tem que fazer’, senão ‘o que eu tenho que fazer?’ E a primeira resposta a essa pergunta é: ‘devo fazer alguns sacrifícios’.[note]Kenrick, K. L., “Practical distributism”.[/note]

Ainda que eu seja o último distributista que reste nesse mundo, eu vou continuar.[note]Ibidem.[/note]

O mundo moderno é traído por seu próprio vislumbre. Ele chama sua prisão de progresso e sua liberdade de atraso. A simples ideia de recuo o faz pensar pejorativamente em retrocesso, esquecendo que certos recuos, muitas vezes, são a única maneira de vencer, como, por exemplo, em uma guerra. O distributismo defende que a volta a uma vida simples é a única maneira de o homem reconquistar sua liberdade e sua dignidade, tudo isso pela distribuição da propriedade.E para aqueles que só conseguem enxergar esse ideal como utópico e anacrônico, porque corresponde a um padrão ultrapassado, o eco das palavras Chesterton ainda ressoará:

Eu mantenho o velho e místico dogma pelo qual o que o homem já fez, o homem pode fazer. Meus críticos parecem manter um dogma ainda mais místico, pelo qual o homem não pode fazer uma coisa porque um dia já fez.[note]Chesterton, “The Outline of Sanity”.[/note]


Agnon Fabiano

Agnon Fabiano é funcionário público e editor da Sociedade Chesterton Brasil. Fascinado pelo conhecimento em geral e, em especial, estudioso da vida e obra de G.K. Chesterton e C. S. Lewis. Acima de tudo, devoto de Jesus Cristo.

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